Distante da alienação, próxima do seu papel político: Quando faz críticas aos usuários da cracolândia, você pensa nos seus privilégios?

Por Carolina Cristal¹

No dia 21 de Maio de 2017 enquanto a terra São Paulo celebrava em baixo da garoa um dos maiores eventos culturais promovidos pela Prefeitura da cidade, a virada não foi apenas cultural e o show deu lugar no palco para mais de 970 políciais – segundo a G1, página virtual da rede globo – iniciando uma dispersão com bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha, gritos e destruição de tudo o que estava à frente da operação (incluindo aqui, os pertences e documentos das pessoas). A operação foi feita em conjunto, de um lado o Governo do Estado de São Paulo, atrás de Geraldo Alckmin e do outro a Prefeitura de São Paulo, atrás de João da Costa Doria Jr.
No mesmo dia o Prefeito anúnciou o fim do Programa “De Braços Abertos”, este pautado na política de Redução de danos e no cuidado em liberdade, compreende que o uso de drogas num contexto de vulnerabilidade social precisa ser tratado com a mesma complexidade que todos os assuntos isolados. Nesse sentido esta questão não deve ser olhada apenas pela àrea da saúde ou da segurança pública e sim ser estendida à esfera dos direitos humanos.

 

É a partir da garantia de direitos que a lógica do Programa funciona, ganrantindo moradia, alimentação, acesso aos serviços da assistência social e equipamentos de saúde além de frentes de trabalho. Segundo a pesquisa independente da Plataforma Brasileira de Políticas sobre Drogas e dados da PMSP, 88% dos beneficiários diminuiram o consumo de drogas, 83% estão em tratamento de saúde e 54% retomaram o contato com a família. Outra pesquisa, feita pela OpenSociety após dois anos da implementação do programa, 72,75% dos usuários estão trabalhando.

 

Se faz importante ressaltar que se trata de uma política em constante construção, que necessitaria de melhorias no serviço e instrumentos de trabalho qualificados para a formulação de mais projetos e seu constante crescimento. No entanto, o prefeito não concorda com estes dados.

 

A ação se inicou às 6h45 e pouco depois haviam muitas pessoas manifestando suas opiniões sobre o tema. Seja na televisão, no rádio, em blogs, sites de jornais, redes sociais.
Minha atenção se voltou à uma página da Polícia Militar que havia participado da ação na cracolândia:

 

“Parabéns pelo trabalho. Esses zumbis não deveriam estar ali. Demorou muito pra isso acontecer. A cidade tinha que ser limpa mesmo. A polícia retirou os pertences deles? Essa sujeirada que eles fazem? É tudo lixo pra eles, tudo descartável, ganham cobertor num dia, no outro jogam fora. Esse monte de vagabundo.”

 

Diz você, em baixo dos seus cobertores naquele domingo chuvoso, atrás da tela do seu celular, que você não pode esquecer nenhum dia sequer em casa, ou ficar sem bateria um minuto, se não, não consegue viver.

 

Logo depois, veio a hora do café. Aquele que você bebe pelo menos 3 vezes ao dia. Um de manhã, se não, não tem como sair de casa pra trabalhar. Um depois do almoço, pra dar aquela acentada na comida. Outro à tarde, só por ser de classe média e poder tomar um café da tarde mesmo.

 

Sábado à noite você foi curtir seu sertanejinho de lei com as migas ou os brothers. No carro vocês ouviram “pega no violão, um copo, uma cerveja, um whisky e um cigarro” (Wesley Safadão – meu coração deu pt). Encheu a cara, não dá pra sair de casa e voltar sóbria(o) né? Voltou bêbada(o) dirigindo. Na volta ainda botou pra tocar “sabe que eu sou viciada e bebo dobrado ouvindo um modão… garçom, troca o dvd que essa moda me faz sofrer o coração não guenta… e os 10% aumenta” (Maraia e Maraisa – 10%).

 

Na sexta você tinha ido ao futebolzinho de leve. Bebeu cerveja com churrasco depois. Chegou em casa fedendo e capotou até o dia seguinte.

Na quarta, dia de jogo na tv, você fez a mesma coisa, só que sem o exercício físico antes. Você não notou, mas sempre tem propagandas de cerveja vinculadas à esse esporte, seja dentro do campo ou nos intervalos. Você também acha que futebol sem cerveja não tem graça. Você foi manipulada(o).

 

*estudos comprovam que a mídia fala muito mais dos danos causados por drogas como o crack, a cocaína e a maconha – que são utilizadas por menos de 10% da população – enquanto o álcool é romantizado nas letras de músicas e na televisão. Naturalizando o uso abusivo. Sendo consumido por mais de 80% da população.*

 

Quando você consegue olhar pro lado e enxergar alguém além do seu umbigo, percebe que a sua mãe só consegue dormir tomando aquele remédiozinho. E que além deste, ela toma pelo menos 5 por dia. Um pra ajudar a celulite pra poder colocar um shorts “quando formos pra praia”. Um pra regular os hormônios. Um multivitaminico, “afinal precisamos sempre cuidar da saúde das unhas, cabelos e pele”. Um pro intestino, que anda meio desregulado nos últimos dias – “compramos mamão e activa, mas não funcionou”. E aquele famoso ômega 3 que a moça da top term na televisão de plasma 3 da tarde contou pra que serve.

 

Do outro lado têm seu pai, que bebe uma tacinha de vinho todas as noites antes do jantar por que faz bem pro coração. Todo almoço de domingo tem que ter coca-cola. Seu irmãozinho está fazendo proerd na escola. Na semana anterior a Anvisa reconheceu a maconha como planta medicinal. Crianças pobres traficam pra ajudar a família. E durante a semana, no seu trabalho, depois do almoço, não pode faltar o chocolatinho.

 

Você, que se achou aqui. É uma pessoa privilegiada. Não seja alienada também. Saia da sua bolha de hipocrisias. Perceba que a estrutura social e institucional de São Paulo, sobretudo, funciona pra nos adoecer. Perceba que ter relações de dependência fazem parte da condição humana.  Ainda mais na era do consumo que vivemos.

 

E que as pessoas que NÃO tem os mesmos privilégios que VOCÊ, estão expostas à muitas  vulnerabilidades. Das quais você nem faz ideia.

 

Então querida (o). Tira o sapatinho. Coloca seu pé no chão. Que a realidade é bem outra. Quando falamos em políticas públicas não é pra pensar em cidade bonita pra quem já tem privilégios.

É pra pensar em gente.

 

 

¹Sou Carolina Cristal, formada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, fui bolsista durante toda a graduação e me formei em 2015. Trabalhei desde à faculdade (em 2014) até 2016 com educação infantil, num viés distante do ensino tradicional que busca promover o desenvolvimento na primeirissima e primeira infância à partir do contato com a arte, a música e a psicomotricidade. No ano de 2016 participei da atualização profissional sobre Antroposofia e Educação na ong alquimia. Em 2017 iniciei uma pós na UNIFESP sobre alcool, drogas e vulnerabilidade social e fiz a atualização profissional à distância na UFMG sobre atenção básica à saúde da mulher em situação de violência. Hoje atuo como Psicóloga clínica e social com projetos independentes. O primeiro é a Roda Terapêutica das Pretas que se propõe a promover processos grupais para mulheres negras que não tem acesso à essa ciência e o segundo é o “zines infantis” onde formamos um grupo multidiciplinar de mulheres que se propõe à construir histórias infantis abordando temas ainda distantes da realidade das crianças, tais como alimentação sem veneno, questões de gênero, modelos de familia não mucleares, etc. Os zines vem também com o intuito do conhecimento ser acessivel para todos.”